07 Janeiro 2020
Quatro papas, dois reais e dois representados, nos oferecem um quadro mais completo e mais verdadeiro do desafio em campo hoje. Dois papas penitentes restituem à tradição a sua força. Com tanta simplicidade e com uma maravilhosa complexidade.
A opinião é de Andrea Grillo, teólogo italiano, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua, ao comentar o filme "Dois Papas" de Fernando Meirelles, em artigo publicado por Come Se Non, 02-01-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo o teólogo, "o coração do filme está em uma dupla conversão: quem queria renunciar não renuncia, enquanto quem renuncia é quem era causa de renúncia. Tudo isso ocorre através de duas “confissões/narrações”, das quais a primeira – a de Bergoglio – é totalmente dita, representada e meditada –, enquanto a outra – a de Ratzinger – é apenas sugerida, aludida e, sobre o mais belo, é “silenciada”. Tudo isso faz com que o “fazer penitência” seja central no filme. O ministério de Francisco é interpretado quase como uma “penitência”, e a retirada do ministério de Bento, como uma penitência diferente".
"Conservar a diferença se torna, para ambos, - escreve Andrea Grillo - o fruto sofrido de uma mudança, de uma conversão, que não é traição. Mudar não é trair, mas é assegurar tradição. Esse é o coração do filme, que, como tal, torna-se um modo sereno e forte de comentar a história da Igreja dos últimos 10 anos".
A ficção cinematográfica faz milagres. A tela do cinema pode nos devolver a trama viva da realidade de um modo ainda mais forte e imediato do que a realidade, mesmo quando observada do modo mais meticuloso. Assim, na estilização, na “forçação”, na invenção e na livre narração do texto cinematográfico, descobrimos o real em uma tessitura mais profunda e autêntica sua, quase revelado a si mesmo.
Isso ocorre raramente, como no caso do filme “Dois papas”, em que o trabalho do diretor e do roteirista, embora com alguns limites, consegue restituir a história eclesial, as figuras de dois papas e, sobretudo, a sua “relação” com uma força realmente rara.
Gostaria de analisar brevemente o longa-metragem, dividindo-o em diversas partes, como me parece que ele foi concebido pelos seus autores. À guisa de premissa, deve-se dizer que a apresentação das duas figuras papais é assimétrica: a vida do Papa Francisco é investigada em profundidade, em detalhes, enquanto a de Bento é sumariamente resumida em grandes momentos, mas nunca “retratada”, exceto no rosto expressivo de Anthony Hopkins. Isso fica claro desde as primeiras imagens que se movem a partir de uma “representação” de uma homilia do bispo Bergoglio para São Francisco.
A primeira parte do filme, que chega até o “jantar solitário” do papa e do cardeal em Castel Gandolfo, lança as premissas de uma “diferença”, que é humana, eclesial, de estilo de vida, de visão eclesial. Aqui, os dois se colocam nos antípodas. E é fácil compreender como as razões cinematográficas, além dos lugares comuns, também levam os dois a uma contraposição estrutural. Que consiste, como pretexto, na apresentação da renúncia do cardeal Bergoglio e a sua recusa por parte do Papa Bento XVI.
A segunda passagem do filme ocorre à noite, após o “jantar solitário”, quando as duas “figuras eclesiais” entram em uma relação pessoal mais direta, tentam se descobrir “irmãos” e encontrar o modo de “conviver”. Alguns elementos autobiográficos, o futebol e a música se tornam a forma de uma melhor compreensão, até o boa noite. Algo muda, nasce uma nova possibilidade de escuta e de compreensão recíproca.
Bruscamente, entra-se no momento mais alto do filme, que começa com a transferência dos dois para o Vaticano, de helicóptero, e que chega ao seu ápice com o encontro de manhã cedo na Capela Sistina, na qual ocorre o diálogo decisivo. Naquele lugar, não só Bergoglio insiste na sua renúncia, mas Ratzinger também manifesta, sub secreto, a intenção de apresentar a sua! A inversão é espetacularmente de grande efeito.
Os papéis se invertem: quem insistia na renúncia (própria) nega ao outro a possibilidade da sua. Assim, para ambos, o caminho da “abertura” passa por uma “confissão”: de inadequação e de pecado, de medo e de desespero. A partir dessa passagem tocante, emergirá, para um, a possibilidade de estar à altura do papado, para o outro, a oportunidade de renunciar ao ministério. E a longa cena na Capela Sistina termina, surpreendentemente, com uma “pizza em fatias” consumida como café da manhã por Bergoglio e Ratzinger na “sala das lágrimas”, com a oração antes da refeição que adia comicamente a satisfação da fome.
A despedida entre os dois, repleta de presságios daquilo que será em poucos meses, ocorre com alguns passos de “tango” entre os dois: o futuro Francisco e o quase renunciante Bento se saúdam com um abraço dançado. Belo e tocante justamente na sua implausibilidade. O desdobramento posterior, com a passagem de 2012 para 2013, é óbvio e atende às premissas do filme. Mas é surpreendente descobrir que os dois papas retratados na tela se tornam uma possibilidade hermenêutica dos dois papas reais. E, assim, com quatro papas, o julgamento histórico pode se tornar mais ponderado e mais lúcido.
Direção, edição e roteiro são de alta qualidade. As palavras que são ouvidas, depuradas de alguns exageros, nunca são banais, seja na comicidade, seja no drama. Porque o pequeno milagre do filme consiste no tom “leve e intenso” que consegue garantir sempre, mesmo quando toca as passagens biográficas ou eclesiais mais duras e difíceis.
O coração do filme está em uma dupla conversão: quem queria renunciar não renuncia, enquanto quem renuncia é quem era causa de renúncia. Tudo isso ocorre através de duas “confissões/narrações”, das quais a primeira – a de Bergoglio – é totalmente dita, representada e meditada –, enquanto a outra – a de Ratzinger – é apenas sugerida, aludida e, sobre o mais belo, é “silenciada”. Tudo isso faz com que o “fazer penitência” seja central no filme. O ministério de Francisco é interpretado quase como uma “penitência”, e a retirada do ministério de Bento, como uma penitência diferente.
Conservar a diferença se torna, para ambos, o fruto sofrido de uma mudança, de uma conversão, que não é traição. Mudar não é trair, mas é assegurar tradição. Esse é o coração do filme, que, como tal, torna-se um modo sereno e forte de comentar a história da Igreja dos últimos 10 anos.
A liberdade cronológica com a qual o filme se desenvolve é mais uma pérola. Assemelha-se ao modo de contar de García Márquez: o tempo flui livremente, para a frente e para trás. Memória e profecia se entrelaçam, como os olhares dos dois protagonistas. Desse modo, os fatos do passado em flashback, as crises do presente e as possibilidades do futuro tomam forma e se perfilam para o olhar e para o coração: às vezes de forma ampla, às vezes de forma instantânea, essas misturas de imagens e de olhares talvez sejam a coisa mais irrenunciável do filme. Junto com a trilha sonora, em que as escolhas musicais são sempre certeiras, fortes e leves, sérias e sorridentes ao mesmo tempo.
A fácil conclusão futebolística – com a final da Copa do Mundo assistida a dois pelos papas – não é simplesmente um final feliz. É a figura conclusiva de uma passagem eclesial muito delicada e ainda em curso. É a possibilidade de entender a Reforma da Igreja como um caminho efetivamente aberto e assumido, por ambos os papas, na continuidade de uma dupla renúncia que põe em movimento um processo virtuoso. No qual, graças também a esse filme, é possível se situar hoje com uma visão mais ampla e mais clarividente. E com uma determinação ainda mais forte e mais radical.
Quatro papas, dois reais e dois representados, nos oferecem um quadro mais completo e mais verdadeiro do desafio em campo hoje. Dois papas penitentes restituem à tradição a sua força. Com tanta simplicidade e com uma maravilhosa complexidade.
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“Dois papas” penitentes: a tradição reencontra sua autoridade. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU